sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Pista de Reação

Havia algo que eu temia mais que qualquer outra coisa quando estava servindo ao exército: a famigerada pista de reação. Para quem não sabe a pista de reação é uma sequência de obstáculos pelos quais todos os recrutas devem passar. Trata-se de uma simulação de combate. Lembro-me como todos estavam tensos. Eu já tinha uma vaga ideia do que nos esperava, pois, meu irmão passou por maus bocados cinco anos atrás e havia me relatado alguns momentos. O oficial que estava à frente quando iniciei a minha trajetória era um dos mais temidos, pelo menos por mim. Tratava-se do Tenente Moura, cara cheio de marra, rigoroso e exigente. Havia um clima de guerra no ar. Nada mais natural, afinal a ideia era essa. Fui logo demonstrando muita garra ao responder, com gritos até, ao que me era perguntado. Notei que o tenente se impressionou com minha atitude até eu cometer meu primeiro ato impensado. A todos seria confidenciada a senha para que a apresentássemos quando necessário e, ao perceber que o tenente mandara um soldado começar sua corrida sem que a senha lhe fosse dada, interpelei-o com uma observação:

-Tenente, o senhor não lhe deu a senha.

Como resultado disso paguei dez cangurus, dez flexões e recebi uma bronca com xingamentos impublicáveis. Após o meu castigo comecei a correr que nem um desesperado. Eram tiros, bombas, gritaria, um inferno. Mas tudo ia bem. Passei pelo charco com certa facilidade, apesar da necessidade de ter que levantar o fuzil acima da cabeça para que o mesmo não molhasse. Entretanto, o segundo ato falho não demorou a acontecer. Não lembro a sequência com exatidão, mas chegara a hora de passar pelo túnel de gás lacrimogênio. Tratava-se de uma vala com cobertura de lona. Dentro havia muita lama e ao redor, soldados antigos, cabos e sargentos gritavam o tempo inteiro e jogavam bombas de efeito moral e de gás lacrimogênio. Tive muita dificuldade devido à quantidade de lama e o cheiro de gás era horrível. Os olhos ardiam, a boca seca, muita sede. Praticamente não saia do lugar, estava muito cansado. Mesmo com tanto perrengue pensei em pegar um dos muitos gorros perdidos por outros guerreiros. O meu, havia perdido um pouco antes. Mas não consegui. Com a demora, mais gás foi jogado. Foi aí que vi uma fresta de luz à minha frente. Pensei: Meu Deus, terminou, chegou ao final desse túnel desgraçado. Sem pestanejar enfiei minha cabeça pela pequena fenda. Não era o fim do túnel.

-“Seu miserável, ‘caga pau’, infeliz você rasgou o meu túnel, recruta desgraçado? - Esbravejou alguém.

Eu simplesmente destruí o túnel. Paguei mais uma “porrada” de cangurus e flexões, além de ouvir outros tantos xingamentos. Estava exausto. Quando chegava perto do final, se me lembro bem, alguém me disse que o sargento Azevedo era quem esperava pela senha e sem a mesma o castigo seria doloroso, por assim dizer. Foi aí que eu me dei conta não me recordar da bendita senha. Quando estava próximo ao fim da pista comecei a sentir câimbras e fiquei deitado no chão, me contorcendo. Antes de ser socorrido ouvi mais xingamentos e ofensas:

- “Levanta recruta caga pau! Se não levantar voltará a refazer a pista do começo”. - Gritavam alguns.

- “Me lasquei”! - Eu pensei.

Já que eu não dava sinais de recuperação, e confesso, fiz parecer ser mais grave do que realmente era, os sargentos resolveram fazer uma maca e convocar alguns dos meus colegas para que me carregassem até a base do acampamento. Chegando lá, mandaram-me tirar a roupa molhada e fui examinado e medicado. Chegaram a cogitar a possibilidade de um resgate por helicóptero, mas não houve a necessidade. Recebi uma injeção que de tão dolorosa talvez fosse melhor enfrentar o Sargento Azevedo e aguentar as consequências por não me lembrar da senha.
Desse fato não me saem da cabeça três situações. Lembro como se fosse hoje: a primeira é como um sargento que eu não conhecia, a me ver só de cueca (por ter tirado a farda que estava toda ensopada) e por minha magreza muito peculiar, disse:

- “Que porra é essa?”.

Realmente, eu não estava muito gatinho.

A segunda foi quando eu ainda estava deitado e meio sonolento por conta da injeção que haviam aplicado em mim e o Capitão Gilson, Comandante da Segunda Companhia chegou para me ver.

- Capitão, eu queria terminar a pista, mas não consegui. - Antecipei-me.

Em resposta, ele me disse:

- Não tem nada não, guerreiro, você é cabra macho da Segunda!

Eu já o admirava pela sua postura e seu senso de justiça, mas depois desse dia fiquei ainda mais orgulhoso por ser um dos seus comandados.

E a terceira foi o companheirismo da turma que me carregou na maca. Enquanto eles me carregavam, para a surpresa de todos do grupo, o recruta Romão (amigo meu de longa data, pois tínhamos cursado todo o ensino médio, juntos) também era socorrido e carregado em outra maca improvisada com varas de madeira encontradas no mato e gandolas (uma espécie de jaqueta que faz parte do uniforme). Além de demonstrar a união do pelotão, apesar de terem recebido ordens para assim fazê-lo, o socorro que nos foi prestado serviu de experiência do que poderia acontecer num combate verdadeiro. Ao longo do trajeto chegaram ao ponto de compor uma modinha para ilustrar o ocorrido:

Soldado "morreu" na pista de reação
O primeiro foi Torquato
O segundo foi Romão.

Até hoje não sei quem foi o gaiato compositor.


A situação tornou-se um dos fatos mais marcantes de nossa passagem pelo 35º Batalhão de Infantaria.

Lutar é preciso!

     "O certo é o certo, mesmo que ninguém o faça. O errado é o errado, mesmo que ninguém esteja vendo".      Eu acredito nisso! N...